segunda-feira, 2 de junho de 2008

Desenho do IVO

Ivo, Ivo Sidney Mendes Silva, é nosso aluno no Núcleo Santo Dias da Silva. Eis. Um desenho de Ivo...

anedota fantástica de uma noiva no centro da cidade. um segundo episódio.


na cidade de são paulo

banheiro estação são bento. eu tremia, mãos, tremia. na frente do espelho, o vestido posto, na frente do espelho. finalizava-me, penteado, maquiagem. mais uma vez, o vestido, o branco, e eu tremia. o fato: impossível acostumar-se. o vestido implica necessariamente no desconhecido, necessariamente na rejeição dos outros, necessariamente na refeitoria de mim. em mim mesma. as pessoas saem de suas tocas para me ver, as pessoas não escondem olhares na rua, não escondem perguntas, qualquer, qualquer, perguntam tudo, resposta qualquer, qualquer, qualquer que viesse bastava. "tá procurando o noivo? tá perdida? o mosteiro tá pra lá... você vai se casar? perdeu o noivo? olha lá! olha a noiva lá! o noivo tá aqui, olha ele aqui!"
vou caminhando por dentro da estação, percebo, não eram as pessoas que estavam saindo de suas tocas, eu é que estava indo para o ninho, do pouco a pouco de gente que se achegava, de repente, multidão, miolo da são bento e, passo pra fora, ladeira porto geral. mais gritos mais que mais. começam também os celulares. sim, não há escapatória, sempre, sempre haverá os celulares e suas fotos. passo do lado de um vendedor, entoando sua ladainha de venda de não-sei-que produto, de repente, ladainha mesma, muda o produto com a minha passagem. "casamentos. vendo casamentos também."

estou tonta. tonta e caminho. o dia, cinza e frio. e eu caminho. uns vem querendo me dar ajuda e eu não quero, não quero ajuda. apoio-me nos prédios. "você está se sentindo bem amor?" concordo com a cabeça. é minha cabeça. ela que concorda e nega tudo.
olho o pontilhão abaixo, subo no parapeito. tempo nem de um segundo, guarda pula e me tira rapidamente. já sabia da reação, queria conferir, as vezes, quem sabe eu estivesse enganada, não haveria tantos fiscais, tantos olhos defendendo o manter do mesmo. o manter do mesmo. o manter do mesmo.
me solto, sigo à sé. no caminho, homens mechem comigo e mulheres gritam, "respeita a noiva! respeita a noiva". outras, outras já disputam o buquê. "joga o buquê! é meu, é meu!"
a sé. antes de atravessar a rua e adentrar a praça, tiro os sapatos. olho de longe. vou passando e no meu caminhar, distraio o pouco público do pastor que deixa de ouvi-lo para seguir a mim. passo no centro de uma roda de amigos e olho, o marco zero, centro da praça, em cada canto, lugares, rio de janeiro, minas gerais. eu estava no umbigo de são paulo. com a ponta do vestido branco, começo a limpar o marco, minas, rio, o mapa no topo. de repente, percebo, muitas pessoas aglomeradas ao meu redor, uma roda, muitos, muitos celulares. olha pra cá, olha pra cá. muitas, muitas indagações. agacho um pouco ao lado da pedra, apenas eu no meio daqueles tantos. levanto-me em direção à catedral, imensa, inflexível, eu, miúda e descalçada.
sigo e sento apenas no primeiro degrau. uma mulher. "coitada. coitada dela, ele te largou, não foi, filha? coitada, coitada dela". olho para as pessoas. miúda e flexível, olho para o muro-gente. viro, mais uma vez olho a entrada da catedral. será que entro? sigo mais alguns degraus. não consigo. não consigo. sento.



eis que uma mulher, uma mulher filha daquele umbigo, buraco negro de São Paulo, uma mulher da rua, daquela praça, órfã de quatro paredes me olha de frente. fala direta comigo, sem construção, sem medo, sem ironia, sem volteios. olha-me no olho, olha direto. “pronto, acabo, pronto. você é nova. tem um tanto pra vivê ainda. o que já foi, já acabo, e pronto, né?”. eu olho aquele rosto que me olha suave, rosto já sem dentes, mas tão bonito. o rosto mais bonito. o mais bonito. “você qué entrá na igreja?”, eu concordo com a cabeça. “pode deixá, eu te levo”. estende-me sua mão e eu entrego minha mão à ela. pegou-me e laçou meu braço no seu, qual noiva, e me conduziu para dentro da igreja. foi a primeira, a primeira pessoa que me quis, daquele jeito, sem modificações, que simplesmente deu-me o seu braço para compor com o meu. eu e aquela mulher. eu e aquela mulher éramos marido e mulher. ajoelho e ela senta ao meu lado. rezo e ela reza comigo, guardando-me em seu zelo suave. terminadas as ave marias e pais nossos, olho para ela. vamo?, ela concorda, novamente trança meu braço ao seu, dessa vez conduzindo-me ao fora, ao mundo. olho, na saída da igreja, estátuas. elas tão sujas, eu preciso limpá elas. sigo à uma e ergo o vestido em meus gestos de limpeza. “não, não, você não precisa disso.” e não é me reprovando que me diz, mas com ternura de quem entende da vontade de lustrar a pedra. vou à outra estátua “não, você não precisa disso, porque você tá boa, o que já foi já passou”.



eis que um homem pega violentamente o meu braço “onde você pensa que vai? espera um pouco aqui que a gente vai fazer umas perguntinhas pra você”, vem outro homem, “vamos ali no posto policial”, a mulher, do meu lado, se adianta, “não, ela tá comigo, eu to levando ela já no posto”, isso, ela me leva, “não, a gente que vai te levar”, eu só confio nela, “eu to cuidano dela” “você?” é, ela tá cuidando de mim. “então, vamo fazê assim, ela te leva e eu vou junto” não, só ela. tento continuar caminhando, mas o homem me prende, me segura ainda mais forte pelo braço. ai, você tá me machucando! “solta ela, solta ela, você tá machucando ela”, ela dá um jeito, nós nos soltamos dos dois...

“você viu o que eles queria fazê? eles ia te levar pro hospital de loco.” eu não havia percebido. “você, você é igual eu”, seguro firme seu braço, “eles tava querendo te arrematá, cê tem que ir embora da sé”, me leva pro metrô, “isso, vamo. eles queria te arrematá! bando de homem safado!” mais uns homens se aproximam, ela espanta todos, “sai! eles tá tudo querendo te arrematá, querendo roubá sua história.” compro a passagem, “presta atenção, quando os homem vié, cê foge, não deixa ninguém te arrematá”. ela, única que não me queria por a parte, única que me quis livre, que eu não me deixasse, eu não me deixasse levar. qual seu nome? “simone” você é um anjo simone. você me salvou. “cê que é meu anjo, eu num vôo esquecê de você nunca.” diante da catraca, “eu to com dor no coração de te deixá ir. cê vai ficá bem, não vai? cê não vai deixá os homi te pegá?” não. não. eu vô ficá bem. nos abraçamos, num longamente, longamente guardado, marido e mulher, foi uma vida inteira que vivi com ela naquele momento, eu e simone, meu noivo, olhos marejados da despedida, abandono depois do encontro, do espelho. ela, o rosto mais bonito. o mais bonito. ela, ela me fez crer de novo. crer de novo naquilo que envolve. crer no homem.
lembro da pergunta que me haviam feito, “você tá procurando um noivo?”, percebo, eu estava. procurava um noivo. e encontrei Simone.
separada dela, separo-me de algo de mim que só ela poderá ter, há algo de mim que só ela viu e que só ela poderá guardar ao lado.
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no metrô, dentro do metrô, ninguém me olha de frente, os olhares são desviados, aquelas pessoas, elas se acostumaram a olhar o escuro. sigo até a armênia e lá, outro mundo. de risos e brincadeiras leves, os homens insistentes e animados oferecendo-se como noivos, num coro intenso de assovios, comentários e propostas, “eu tô aqui amor, seu noivo”, não, meu noivo ficou na sé, pensei. entro num bar, tomo água, café, suavemente embalo as pessoas na fantasia, e elas divertosas, se esparramam com minha passagem. um bando de crianças sai, olha a noiva, olha a noiva, uma noiva, uma noiva!, até que uma, mais adiante, pergunta, malandra, "onde cê vai? você fugiu do noivo foi?", olho sorridente, respondendo a malícia da menina, ela entende sozinha que sim.
volto ao metrô, seguem-me os seguranças que carrego até a rodoviária. lá, deixo-os assim como deixo a roupa, dispo-me do vestido, incerta de querer despi-lo, há algo em mim, algo que queria ficar na roupa, mal consigo mapear o quê, o quê me faz retornar ao todo dia, mesmo que mesmo. penso, a noiva é o meu caboclo de lança, o vestido é o manto, a véu é a cabeleira, o buquê é a lança. penso, a noiva é o meu carnaval. desentendo de novo, como é possível retornar depois do carnaval?
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entretanto, ainda que despida da roupa, sei de meu casamento, a qualquer um que me venha, entenda, casei-me já, casei-me tanto, dos olhos que se entenderam, profundo olhar de cão por onde se espia o Mais.





por Carolina Nóbrega

anedota fantástica de uma noiva no centro da cidade. um primeiro episódio.

Na cidade de Campinas - SP



Vestida de noiva, inteira afeita, eis, menina em noiva inteira, o longo branco, o vestido que antecede, o vestido-prenúncio. O longo branco. Véu. Buquê. Eis. Menina em noiva afeita.
Desce a ladeira assim, em noiva, desce a ladeira inteira armada. Armadura do ultimo dia do eu só. Virando a esquina, senta num ponto de ônibus. Num ponto de ônibus e noiva. Do outro lado, outro ponto, mulheres de uniforme riem e apontam. Outra direção e novas mulheres, essas, perplexas. Menina. Sua família, cadê? Qual o telefone? Eles não estão procurando você? Me dá o telefone que eu ligo. Onde você tá indo? Deixa, vem comigo, eu vou te dar um suco.
Não. A tudo não. Mulheres desistem e seguem.
Menina faz sinal, ônibus vem descendo a rua, faz sinal, ela quer ir ao centro da cidade. O ônibus silencia. Motorista ri, descrê. Cobrador encara. Ela conta as moedas e dá a nota enrolada, enrolado o dinheiro entre sua mão e o buquê. Uma moeda cai, um senhor pega, entrega. Um olhar preocupado. Ela senta. Ela senta e olha a janela. Menina por dentro é menina serena. Um homem senta a seu lado. Me corta o coração. Me corta o coração te ver assim nesse estado. O que deve ter acontecido? Tão bonita, assim nesse estado. Como você chegou nesse ponto? Dá pra ver no seu olho a agonia, o desespero. Eu vejo o desespero. Tão bonita, assim nesse estado. Da onde você vem?
Longe.
Qual seu nome?
Menina.
Não quer dizer?
Menina.
A vida, ela nos puxa as pernas e nos prega no chão. A gente não espera e perdemos tudo. Perdemos tudo, menina. A gente fica sem Deus e sem ninguém no mundo. É duro, parece que não dá pra agüentar, tem tombo que parece que não dá pra se levantar menina. E eu olho pra você e eu olho pra você e como a vida é triste! A vida é triste! Bem, mas se você quisesse eu, eu descia agora desse ônibus, eu casava com você agora.
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Eu posso cuidar de você. Eu ia fazer de tudo pra te fazer feliz. Eu posso casar com você. Eu desço agora do ônibus. Quer?
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Quer?

Não.

Ele fecha a cara. Ele fecha totalmente a cara. Fecha também a simpatia, o discurso. Mudo e inerte, permanece ao lado dela até o final da linha, até o final da linha.
Terminal central e ela desce. Então que sons de todos os lados. Então que gritos e buchichos e dedos e comentários. Largou o noivo! Olha lá! Ela nada que diz. Ela só insinua olhares.De repente – quantas pedras! – ela se apóia num poste pra tirar os sapatos. Um sem número de celulares a fotografa, um sem número de pessoas para ver um descalçar de sapatos. – Perceba-se, hoje, andando assim, com a foto possível no bolso, só se crê naquilo que teve registro, não tirar foto equivale a não ter havido – Até que um fotógrafo em sua frente, um fotógrafo mesmo, muito mais que celular, ele tira daquelas máquinas gordas de gordas lentes que buscam desnudar. Olha pra câmera! A menina olha e menina pensa “corre”. E Corre. Corre. Para longe das tantas lentes. Volta a andar. Tudo naquelas ruas parece que ela nunca nada havia visto, tudo vira qualquer outra coisa que não a coisa normal... Ela percebe seus pés. Nunca havia pisado desnuda aquele chão. Aquele era chão de não se pisar de pé desnudo.
Une-se a multidão para atravessar calçada. Percebe-se o lento dar-se conta... as pessoas pouco a pouco notando a noiva por entre os tantos. Uma senhora, diz pra mim, você o abandonou? Ela nada que diz. Ela só insinua olhares.
Segue olhando o pé e a barra branca do vestido sob o fundo cinza e sujo daquele chão. De repente, percebe-se, ao lado uma igreja. Deus. Uma igreja. Deus. Evidente, ela, perto da igreja, tem ganas de entrar, mas se aquieta. Teme. Segue e um pouco adiante, nem bem desfeita daquela sensação de Deus na barriga, surge, qual como brotam nas casas as traças, surge uma repórter e seu cameraman. Ele, atrás da menina, de frente, lado, penetra com aquele aparelho a pequena existência daquela menina e daquele longo branco. A repórter incessantemente tece questões. A menina, nada que diz, olhares. Mas seu braço é segurado, ela é cercada, querem mais que os olhos da menina. Ela pensa, “mais um nada acontece nessa cidade? Serei eu um grande assim acontecido?”. Ela pensa, “corre”. Ela corre. Repórter corre atrás a alcança, continua, perguntas ainda mais incessantes, agressivas, noiva intimidada, quase que engendra respostas... em frente, vê um quartel policial, barriga se faz em gelo... e menina corre de novo e se livra. Do quartel. Da repórter.
Vozes.
Largou o noivo.
Ele não te quis? Te deixou esperando.
Olha a noiva fujona!
Risos.
Segue com o andar, pois que o sereno se desmonta. Ela, em ruas, desentende e desentende, sempre e mais ainda. Como se não bastasse o tudo que já havia sido, mais um ele e ela se lhe surgem. Dessa vez, não com máquinas e questões. Mas com fé e certezas. Um casal de fé e certezas. Ela beirava uma avenida quando um carro sobe a calçada em repentino estacionamento e desce o casal, põe-se homem de um lado e mulher do outro, noiva no meio.
Foi Deus, Deus seja louvado Senhor! Deus seja louvado, Senhor! Eu virei o carro e você estava aqui, eu virei o carro bem na hora, Senhor obrigada! Eu sou dona de uma lanchonete e quando eu te vi passar, meu Deus, meu Deus, ele me deu um sinal, um sinal em mim, ele me vem as vezes, ele já me veio outras vezes, você deve ajudar essa jovem! Ai quando eu te vi passar, meu Deus! Meu coração se apertou tanto, você é tão bonita e Deus tem algo guardado pra você, eu vejo que Deus tem algo guardado pra você.
Ela respira fundo, perde o ar.
Ele. Ela está muito nervosa. Ela está tremendo. Ela tremia. Nós somos de uma igreja, aqui perto, nós somos colegas na religião. A gente vai te ajudar. A sua família? Onde está a sua família?
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Eles sabem onde você tá?
Você não quer ligar pra eles?
A gente pode ligar se você der o número. Me dá o número da sua família.
Não. Eu não quero ligar. Eu não quero. Eu não quero.

Ela. Olha só, você vem com a gente, pode confiar na gente. Eu sou dona de uma lanchonete aqui do lado. Vem com a gente. Você está muito nervosa e precisa se acalmar.

Não estou nervosa.
Você está muito nervosa e precisa se acalmar. Olha, eu vou te levar pra casa, aí você vai tomar um banho e eu vou te dar uma outra roupa pra você tirar essa daí, que as pessoas, as pessoas estão dizendo coisas de você, tão apontando pra você, tão rindo da sua cara, tão falando coisas ruins quando você passa.
Eu quero ficar com a minha roupa.
Não. Você não pode. As pessoas tão comentando. Isso é ruim pra você. Você vai vir com a gente, vai tirar essa roupa, vai dormir. Aí a gente vai orar pra você. Aí, se você quiser, você dá o telefone da sua família pra gente e a gente liga.
Eu não quero ir. Eu quero ficar sozinha.
Não. De jeito nenhum. Você não pode ficar sozinha.

Menina pensa “eles acham que eu vou me matar”. Tá tudo bem, eu to tranqüila, só quero andar mais um pouquinho e já vou embora, vou pro terminal e vou embora.

Não. As pessoas já falaram com a polícia, as pessoas já chamaram a assistência social, as pessoas já falaram com o hospício. Vão vir e te pegar a força e te levar pro hospício e te dar um monte de remédio. Você tem que vir com a gente.

Eles pegam a menina pelo braço e começam a levar para o carro.

Não. Não. Eu já estou indo embora. Eu não quero ir com vocês.

Eles como que não escutam. Seguem a força. A colocam no carro e fecham as portas. Começam a dirigir. Cantam começam a cantar uma música atrás da outra, recheada com Aleluias.

Menina pensa “como. Como eu faço par ir embora. Como eu vou convencê-los a me deixar ir embora?” Escuta, eu me acalmei muito, eu estou bem, vocês tem razão. Eu, eu estava confusa e nervosa e vocês me ajudaram muito. Agora eu percebi que eu devo ir agora. Eu quero ir pra casa.

Você vai trocar de roupa antes.
Não. Eu quero ir pra casa agora.
A gente te leva, onde é?
Não. Me deixem no Terminal Central que eu vou pegar o ônibus.
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Me deixem no Terminal.
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Escutem, pra ir pra casa eu pego o 335, me deixem no terminal.
Ele pode ir com você, pra gente ficar tranqüilo?
Não.
Se eu der o telefone você liga pra dizer que está tudo bem?
Sim.
Tudo bem, a gente já está te levando pro terminal.

Eles não estavam. Iam cada vez mais pra longe do terminal.

O terminal é para o outro lado...
Esse é outro caminho.

Não era.

Eu tenho certeza que o terminal é para o outro lado.

Eles cantam.

Vocês estão mentindo pra mim! Eu quero descer desse carro agora! Eu não posso confiar em vocês, eu quero descer agora!
Não, você precisa se acalmar, eu vou te levar na casa de uma companheira da igreja antes...
Não, eu não quero.
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Continuam dirigindo. O carro para de frente de uma casa e a mulher buzina.

Escuta. Se vocês não me levarem para o terminal agora, eu vou descer e vou sair andando por aqui, o que vai ser bem pior porque eu não conheço nada nessa região.
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Eles se olham desiludidos. Sai uma mulher da casa. Vê a noiva, cara fechada. Olha pro casal, dá um aceno. A mulher nem sai, só abre o vidro.

A gente trouxe ela pra tomar um banho, se trocar, pra gente orar... Ela estava andando assim no centro da cidade... tava todo mundo rindo e apontando... eu to até tremendo... quando eu vi ela passar Deus me deu um sinal que eu tinha que ajudar ela... Mas ela não quer sair. Não quer ir pra sua casa.
À isso, a mulher da casa responde, ela não quer ajuda. Tem que entregar essa menina para a polícia.
Escuta. Eu já to bem, eu só quero ir pra casa, me deixem no terminal.

A mulher da casa reprova, a mulher do carro, tá bom, vou te levar ao terminal, mulheres e homem se olham. O carro vai retornando ao centro, passa num pontilhão por cima do terminal e segue em outra rua.

O terminal está lá atrás!

O carro estaciona.

A gente já vai te levar lá, aquela é minha lanchonete, eu só vou pegar um suco pra você se acalmar.
Eu não quero um suco.
Vou lá pegar seu suco.
A mulher sai. O homem fica de vigia. Silêncio.
Ela está muito preocupada com você, quer muito te ajudar.

Silêncio. Silêncio e demora. Um suco não demora esse tanto. Menina se dá conta.

Ela não foi pegar o suco, não é? Ela foi chamar a polícia...

Silêncio.
Menina abre a porta do carro. O homem sai e a segura pelo braço, ela se solta e, mais uma vez corre. Dessa vez ainda mais, dessa vez muito. Entra um caco de vidro em seu pé. Ela ainda corre. O pé sangrando. Ela vai ao terminal, no caminho, um rapaz. Nossa, uma que nem você eu não deixava escapar nunca, eu ia atrás até no inferno. Chega no terminal, 335 já no ponto, sente o alívio mais breve que já se sentiu, pois que atrás, repara, o carro de polícia. Dois policiais, eles a olham e vem um de cada lado, a cercam, pelas laterais.

Onde você vai? Tá tudo bem?

Menina desmonta. Terá que dizer a outra verdade, a que queria que os outros não precisassem ter, para que não precisassem explicá-la, mas estar com ela...

Escuta. Sou uma atriz.

Depois de um momento de desconfiança, os policiais desmontam e se divertem, se divertem muito. Muito.

Já tinham seis viaturas e uma unidade de resgate atrás de você. Estavam filmando o centro pra te encontrar. Recebemos um BO, que tinha uma jovem vestida de noiva prestes a cometer suicídio.

E ela, ela não havia feito nada além de levar o longo branco a passear. E ela estava sem os documentos.

Então, menina, teremos que te levar de viatura para confirmar sua história. E você vai ter que esperar aqui dentro do carro, porque não é esse aí que vai te levar.

Menina, de noiva, dentro do camburão, dentro do terminal central. Pessoas batem na janela e mandam tchau. O terminal se faz em multidão. Só os policiais ouviram da atriz, aos outros, uma noiva no camburão. Mais um sem número de celulares pra fazer ainda mais existir o fato.

Vamos tentar te levar embora rápido que daqui a pouco o jornal ta aí.

Chega um outro policial correndo, ofegante.
Ai, ainda bem! Vocês acharam ela!
Ela é uma atriz.
Não acredito!! ­
– põe a mão na testa – Tinham me falado que ela tinha se jogado da ponte!

Depois de um tempo, finalmente a levam, ela troca de camburão em uma praça, ainda espera um pouco. Aparece então o fotógrafo da repórter.

Menina louca! Vocês acharam ela? Nossa, eu fiquei preocupado! Você saiu correndo! – aos policiais – O que aconteceu com ela?

Ela descobriu no dia do casamento que o marido era veado ­– divertem-se.

Nossa! Menina! Viu? Eu ia publicar a matéria amanhã, mas não vou mais, não vou mais, viu?

Enfim, levada embora, um policial se diverte mostrando seus aparatos à falsa noiva, mostrando a noiva fantasia os brinquedos da fantasia dele, arma, objeto que dá choque, spray de pimenta, algemas... também de um celular a fotografa, a fotografa com ele ao lado, abraçado com ela. Noiva e policial.

Chegando a sua escola de teatro, enfim, em noiva afeita, policiais ao lado, os colegas vão ao delírio no corredor, o que é isso Carol? O que é isso? Funcionários vêem e vão correndo chamar os outros, cochicham. Olham à menina como quem olha uma criança que fez arte para aparecer. Vem o chefe de departamento conversa com os policiais, ela dá os documentos...

As pessoas vão voltando às salas, afinal, havia terminado o horário de almoço.
Os policiais cumprimentam a menina. Lembra da gente quando ficar famosa. Vão embora.
O chefe de departamento bate em seu ombro. Depois a gente conversa sobre isso.

Ela no corredor já vazio. Vestida de branco e sentada nos bancos pretos do corredor já vazio. Ainda mais reduzida a sua pequena prisão, receptáculo, é uma atriz... obrigadamente despe a fantasia, já sem forças, mas quase que querendo permanecer vestida... “Não quero a atriz. O porto. Talvez preferisse ser a louca. Não quero me despir.”

Se despe. Roupa comum. Dia comum. E ela, reduzida, desentende e desentende, sempre e mais ainda.

Dia seguinte, ela estampada em foto em três jornais. Noiva misteriosa. Quem é ela? Era ela? Não. Não mais.

Na escola, pregam o jornal ao mural. Pequena celebridade naquele pequeno mundo, ela cumprimentada como noivinha, recebendo elogios e comentários irônicos, reage com risos, entra na brincadeira geral. Também se desconhece. A noiva era ela?
A verdade: ela sentia falta do longo branco. Sentia falta da rua se desfazendo em seus vícios aos seus pés, desfazendo os vícios ao empilhar mais ainda os vícios um sobre os outros, ela sendo o alvo de uma neurose. Neurose geral da qual também fazia parte nos dias, nos outros dias, os dias comuns. Pois que naquele momento, ela pôde estar de fora. Naquele momento ela pôde sentir o olho do mundo. Agora, ela era apenas mais uma anedota, mais um motivo de pequeninos rumores.
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Ela pensa. “eu caí. caí nas armadilhas. eu sou fraca. ratoeiras. existem ratoeiras por todos os lados.”
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Dias seguintes, em alguma casa, os jornais serviam para uma família empacotar os copos antes de fazer a mudança.


por Carolina Nóbrega

as novas portas

diante de São Paulo.

Encontro das certezas e descertezas, o grupo continua rumos, procurando as brechas dessa cidade, Suellen decide por outros portos e entra Luísa Nóbrega.



Sapato Sujo na Soleira da Porta ganha o programa VAI - Valorização de Iniciativas Culturais - da Prefeitura de São Paulo. O projeto, de oito meses, está se desenvolvendo em dois albergues da REDE RUA (http://www.rederua.org.br/) em Santo Amaro: A Pousada da Esperança e o Núcleo Santo Dias da Silva.

Dessa vez, o grupo também está desenvolvendo oficinas com os freqüentadores dos espaços. Pretende-se borrar os limites entre artista-espectador.



Caminhando.