sexta-feira, 30 de maio de 2008

Performance TUSP



Chamados para apresentar o processo do Sapato Sujo na Soleira da Porta na Mostra Experimentos 2008 no TUSP, não vimos sentido algum em apresentar o espetáculo, uma vez que sua existência se dá na relação direta com um espaço de uso cotidiano, não um espaço teatral. Portanto, afirmando nossa característica de busca dos limites entre a ficção e a realidade, decidimos desenvolver no TUSP um seminário-performance, no qual trabalharíamos com o próprio estranhamento de se estar naquele local onde as personagens veriam a si mesmas no vídeo, no local que dá sentido de existência a elas. Após a improvisação, seria feiro um seminário a respeito do trabalho finalizado com uma conversa aberta.



Começamos o trabalho na fachada do TUSP, no qual de cara encontramos os moradores daquela rua, daquela fachada, TUSP-casa em dias de chuva. Da porta pra fora do teatro, estavam aqueles que nós procuramos entrando para dentro do albergue, e com eles, começou a apresentação. Uma amizade breve se instalou, logo de cara, queriam entrar, para nos acompanhar ficção adentro, entretanto, acesso negado. Eles não podiam passar da soleira. O espaço real, separado do edifício teatral branco e límpido por catracas, não podia vazar para dentro. O teatro não permitia a entrada daqueles seres humanos reais, que eram espelho direto dos ficcionais, personagens vividas por nós, atores, que entravamos e saíamos daquele lugar sem entrave algum.



Impossibilitados de romper a fronteira, durante toda a apresentação, nos referíamos ao fora, lá, onde escolhemos a morada, para fora das regras fixas e seguras de convivência do edifício teatral. Lá, onde buscamos os vazamentos, por onde, talvez, escorram novidades. Isso da flor e do asfalto.

Marionete. Anhangabaú.



2008.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

jornais de tempos atrás.










textos do programa do Sapato Sujo no SAMIM



ÀQUELES QUE NOS ENCONTRARAM NO CAMINHO

Escrevemos agora, abertamente a vocês, porque o teatro que buscamos é feito plenamente da relação e da troca, sendo assim, nunca será um produto totalmente acabado, uma vez que se atualiza a cada novo encontro de sua trajetória. Faz parte, portanto, da construção criativa desse es¬petáculo, trocar nossas experiências e reflexões com vocês. Se tiverem paciência e vontade, segue abaixo algumas de nossas impressões.
Tínhamos algo em comum: a neces¬sidade de estar em relação. Radicalizando na possibilidade de encontro implícita ao teatro, nos arriscamos a construí-lo na linha divisória entre realidade e ficção e entre grupos que socialmente não se misturam. Cremos que a poesia pode ser capaz de criar fissuras na realidade, atravessar fronteiras e gerar encontros. Trata-se da busca de um teatro que intervém direta¬mente na realidade cotidiana, permitindo aos espaços públicos a perda momentânea de sua carga funcional através da liberdade do travestimento.
O primeiro passo para a construção desse trabalho foi, portanto, o encontro de nosso espaço de relação, O SAMIM - Serviço de Atendimento ao Migrante Itinerante e Mendicante. Um albergue público, antiga estação de trem, rondado por histórias passadas dos tantos que lá já estiveram, histórias que logo se repetem e se espelham nas histórias novas de cada um que chega. Trata-se um lugar transitório, em si um lugar-limite, uma vez que abriga pessoas que se distanciam de seu passado, a espera de outra coisa.
Diante desse lugar, em relação com aqueles que o freqüentam, que nasceu o tema disparador do espetáculo, a questão do ESTRANGEIRO.
Somos atores estrangeiros a esse local e portamos as histórias de personagens-estrangeiros que portam suas própri¬as histórias, seu sonho interrompido, seu passado arquetípico, seu duplo embonecado, já cristalizado pelo tempo, como a única coisa que possuem, a única bagagem, da qual são profundamente apegados, necessitando constantemente lidar com ela, numa relação neurótica e infantil, de jogo, repetição e brincadeira.
Através da criação de procedimentos internos de trabalho e de frentes de pesquisa, dando mais foco à prática do que à reflexão, que o grupo foi criando operacionalidades para gerenciar o trabalho, que envolviam a nossa constante relação com o albergue, bem como performances individuais em diferentes espaços públicos da cidade de Campinas e da Unicamp e o trabalho criativo em cima da idéia do estrangeiro através da improvisação a partir de contos.
As performances realizadas, no qual trabalhamos os limites da realidade e da ficção materializados em algumas figuras: uma noiva, uma miss, um mergulhador, uma viúva, um estrangeiro-árabe. Tratam-se de personagens da vida real, que fora de seus contextos possuem o poder concreto de romper o cotidiano das pessoas, uma vez que elas não conseguem definir se estão diante de uma ficção ou de uma realidade diferenciada. Dessas experiências - nas quais vivemos na pele a sensação de ser estranhado, ac¬olhido, ridicularizado, violentado, silenciado, fotografado e filmado por um sem número de celulares - surgiram uma série de elementos essenciais da peça, bem como a personagem da Repórter, nascida da epopéia anedótica provocada por uma noiva no centro da cidade.
O trabalho com os contos, por sua vez, nos levou a uma série de escritores, dentre os quais, destacou-se o autor moçambicano Mia Couto que inspirou mais profundamente as histórias de nossas personagens. Ele escreve através de uma língua que nos é comum e enraíza,se numa cultura negra que nos é familiar. Entretanto, mantemos com seus textos uma distância de estrangeiros, de uma realidade que nos parece mais fantasiosa e misteriosa, do que concreta, uma vez que nosso país habitado por histórias e fantas¬mas desse país estrangeiro.
Mia Couto, quando escreve, não se detém em limites raciais ou etnológicos, entende a literatura como um espaço de liberdade, da negação de nossa condição, da possibilidade de transitar entre os espaços através da criação de mundos inventados.
Desejamos aqui, na Estação dos Sonhos, também nós inventar um mundo para além da nossa condição. Feito da comunhão das tantas histórias aqui narradas e caladas, onde essas personagens-estrangeiras, porta-vozes de outras realidades, possam contar suas histórias tanto aos que aqui foram convidados a vir pela primeira vez para ouvi-las, quanto aos que aqui estavam e lhes abriram as portas.
A estes, freqüentadores do albergue, o nosso agradecimento, por nos acompanharem nessa caminhada, permitindo a nós atravessarmos umas tantas fronteiras, e nos ajudando nesse caminho.
O nome Grupo do Trecho vem exatamente de nossa relação com algumas das pessoas que cruzaram nosso caminho no albergue, os, como eles mesmos se denominam, trecheiros. Homens e mulheres que não possuem morada e trabalhos fixos, vivem na estrada, de um lugar ao outro, com o fôlego de estarem em constante adaptação. Homens e mulheres que vivem no TRECHO. É de nossa identidade com os trecheiros, de nós também buscarmos o fôlego para estar na linha da fronteira, que emprestamos o termo.
Sapato Sujo na Soleira da Porta se criou, por fim da junção de tudo que vivemos, junto a tantos que estiveram em nosso caminho, daquilo que cada um de nós foi aos poucos compartilhando um com o outro.

Grupo do Trecho
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CAROLINA NÓBREGA



Não me importa o teatro. Importa-me o mundo. Um outro que não esse.
Em que haja algum tipo de permissão ao encontro.
Por descrer nas instituições, que falseiam a vida, falsificam as relações.
Por olhar o mundo nosso como cheio de limites invisíveis.
Vem a necessidade de pular os muros, de procurar àqueles que comigo se dispõem a se ir infiltrando por entre as brechas, para talvez, enfim, encontrar pequenas verdades e - atenção que agora me permitirei a ousadia de uma utopia, ciente de que as utopias devem ser mantidas em segredo nos nossos tempos - talvez alguma saída, o possível encontro de um novo rumo. Cansada de estar sempre em um receptáculo ou outro. Nenhum todo. Nada entre. Por isso, a busca. Outra vida.
Uma vida que possa desenvolver algum tipo de todo e não fotografias pedra a pedra. Uma vida que possa permitir o encontro.
Em que se suavizem as distâncias entre as gentes.
O só isso do eu e você de frente um para o outro, e o que surge desse eu e você (as pequenas melodias).
E eis: agora e com essas pessoas. Procurando as perguntas mais do que as res¬postas. Um princípio de rumo. Um descongelamento. Em toda nossa fragilidade, diante de vós.
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LUCIANO MENDJES



A sensação que tive ao entrar nesse albergue pela primeira vez foi de uma tristeza sem passado e sem futuro. Estar nele era como entrar no coração da nuvem cinza, que esconde a luz dos astros imediatamente.
A segunda vez que nele estive, numa ocasião onde de fato estava sozinho, sem a companhia das minhas parceiras de jornada, entrei novamente no coração da nuvem cinza e nela tudo o que me foi dado era vivenciar o sentimento da espera e da invisibilidade. Era mais um caboclo, com a sorte deter uma calça boa, na expectativa de montar o palco do Chitãozinho e do Xororó.
Da soleira da porta pra dentro daquele lugar, como em uma espécie de pur¬gatório dantesco, compreendi que o teatro morto do qual nos falam os mestres é um encosto agarrado às nossas costas. E esta era a nossa pena: ali dentro, arrastando aquele cadáver escamoteador de vida, sendo que apenas encontros reais, e perigosos, é que nos purificariam das nobres ilusões sobre o valor da nossa arte.
Ao finalizar a primeira fase da criação desse espetáculo, a fase do primeiro espanto ao atravessar a linha da fronteira, tomo para mim a afirmação de Mia Couto, de que cada ser humano é uma raça. Albergando a si próprio, com suas vidas sendo feitas, de fato, mais de histórias que de átomos.
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SUELLEN LEAL



"Esta é a linha da fronteira, Nyambi. Agora você escolhe: regressas à aldeia ou vais para o mundo?".
(A Lenda da Noiva e do Forasteiro - Mia Couto)
Ao avistarmos a última estação de uma viagem de quatro anos, decidimos trilhar juntos o caminho de nossos anseios,enfim escolher a jornada a seguir.
Decidimos ultrapassar os limites do conhecido, derrubar as paredes que até então nos protegiam e isolavam.
Pegamos nossos sapatos, vestimos a fantasia e caímos no trecho.
Quando cheguei a esta antiga estação de passagem, hoje "Estação dos Sonhos", fui povoada. Tantos sonhos, histórias e sensações. À deriva, mas acompan¬hada, mesmo que na solidão. Vivendo ao limite, estar de mãos dadas neste trajeto, com todas as alegrias e o cansaço decorrentes.
Do desgaste à renovação e à busca constante do estabelecimento e manutenção de nossos objetivos. Queremos o Encontro!
Estar com o outro e para o outro sem as barreiras que aos poucos vão se edifi¬cando ao nosso redor e restringindo nossas relações.
Pontos na trajetória que determinam a estação seguinte: Momentos em que se escolhe o próximo passo e se determina a direção a seguir.
É chegada a linha da fronteira, agora é ficar ou ir pro mundo ...
Que venha o mundo!
Salve!
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NÁDIA RECIOLI



Se é nos contornos de mim que me desenho, me formo naquilo em que toca o meu limite, nasço daquilo com o que me relaciono. Não sou definitiva. Cada vez mais, é em trânsito que me construo. E me percebo mutável.
O estar aqui tornou etéreos os meus limites, me fez permeável, remexida em lugares de mim que eu desconhecia. E foi, admito, assustador muitas vezes. Vi-me pequena diante de uma pequena parte da vida que ainda assim é imensa diante de mim. Porque abarca o outro e me atravessa.
Gosto disso. Do risco de me ver transformada e ter de aprender a lidar com isso. Gosto de poder tocar, de participar de alguma maneira, poder transfor¬mar também. Acredito na força do que se constrói junto, na verdade do que se descobre junto, da pergunta que se faz junto.
No entanto parece rara a possibilidade da comunhão, agir por si e para si é sempre mais provável, mais realista. Mas é exatamente aquilo que se apresenta como real e possível que sinto a necessidade de questionar.
E encontro neste albergue, nesta pesquisa e neste grupo, a possibilidade de continuar a busca e a certeza de companhia na caminhada. Porque já não sei e nem quero caminhar sozinha.
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GRÁCIA NAVARRO

Quatro jovens alunos a quatro anos Proposta delicada: mãos à obra!
Orientá-los no gerenciamento da "empreitada" e na criação de "operacionali¬dades" para fazer o teatro "pressentido" por eles.
Travessia entre a graduação e a vida profissional - hora de fazer a mala/síntese de referências com projeções e partir. Boa viagem!

Sapato Sujo na Soleira da Porta


Esse foi o nome com o qual foi batizado o trabalho do grupo desenvolvido no SAMIM. O título veio de Mia Couto, escritor moçambicano, que navegou o grupo nos universos poéticos do estrangeiro, sendo as personagens desenvolvidas especialmente através de alguns de seus contos. Sapato Sujo na Soleira da porta foi título encontrado no texto Os Sete Sapatos Sujos, texto desenvolvido por ele para a abertura do ano letivo de uma universidade:

À porta da modernidade precisamos nos descalçar. (...) sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos.
(...) mais do que uma geração tecnicamente capaz, nós necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica. (...) Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade para fazer perguntas. (...) Interessa-nos um passado que não esteja carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que não nos venha desenhado como uma receita financeira.
(...) antes vale andar descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros.


O espetáculo que nasceu em Campinas, já começa a viajar à outros lares, nos quais, perde sua face e cria uma nova: sendo seu princípio a relação, é impossível que ele se mantenha o mesmo.

Grupo do Trecho, o nome.

O nome Grupo do Trecho surgiu exatamente desse primeiro trabalho do grupo. Na relação com as pessoas do albergue, os integrantes do grupo conheceram uma série de histórias e situações de vida diferentes. Dentre as tantas histórias, muitas foram as daqueles que se auto-entitulam trecheiros.
Trecheiro é aquele que vive no Trecho, que vive do Trecho. Ou seja, que não tem morada e emprego fixo. Constrói sua vida no percurso, seguindo sempre adiante em busca de novos empregos em novos lugares.
Da relação afetiva com essas pessoas e da identificação direta que o grupo sentiu com esse habitar o trecho e a necessidade do grupo de construir um teatro sem seu edifício, um teatro que transita e se constrói nos espaços entre, nos espaços públicos, sem morada fixa, surgiu o nome Grupo do Trecho.

O Princípio


2007.
O encontro de quatro estudantes de Artes Cênicas da UNICAMP rumo ao seu último semestre e a necessidade da criação de um projeto pessoal, uma pesquisa da qual se quisesse apropriar, um teatro que se quisesse fazer. O encontro dos quatro, veio do comum acordo: não se quer o teatro. O edifício. Se quer, sim, a possibilidade de fluidez dos espaços, não incoporando mecanicamente suas funções.
Antes da função, há a fisicalidade do lugar. E há, especialmente, aqueles que o habitam, que são, enfim, aqueles que tem o poder de dar função a esse lugar.
Havendo algum tipo de acordo, havendo algum tipo de vontade, de ação, pode-se dar ao espaço a liberdade da perda momentânea de sua carga funcional... pode-de criar, frente à realidade, outras realidades possíveis.
Aproveita-se do teatro, a possibilidade do encontro e a possibilidade da criação de um universo ficcional, de um universo outro, distinto da vida cotidiana.
Aproveita-se dos espaços públicos, a idéia de "público" levada literalmente, propondo desviciar os trânsitos.
Os quatro primeiros:
Carolina Nóbrega
Luciano Mendes
Nádia Recioli e
Suellen Leal
Entrando no desconhecido, num passo a passo, frágil, delicado, com a orientação presente e firme de Grácia Navarro, caminhamos por um semestre na descoberta de nossos próprios meios de trânsito.


O trabalho, enfim, começou da escolha do espaço. Afinal, dele e das pessoas que nele se encontrariam, que se desenvolveria o trabalho. O espaço escolhido foi um albergue público de Campinas, o SAMIM (Serviço de Assistência ao Migrante Itinerante e Mendicante), com seu espaço e com as pessoas que o freqüentam. O local fora antigamente uma estação de trem, e o próprio albergue é morada temporária daqueles que lá se hospedam. Diante desse espaço, e de nós em relação a esse espaço, o grupo escolheu como tema para o espetáculo: O ESTRANGEIRO.

Cada ator é um personagem-estrangeiro, e cada ator é em si estrangeiro do lugar que no momento da representação ocupa. Os atores através de diferentes recursos narrativos jogam com as diferentes histórias de cada personagem que se cruzam com as tantas histórias dos espectadores. A peça entrou em cartaz no espaço do próprio albergue, para o qual foi conduzido o público de fora, abrindo espaço para um encontro pouco provável no espaço do cotidiano.

A relação forte com a própria história naquele espaço, unica bagagem que de fato se possui, levou a construção de duplos embonecados, um passado vivo, fantasma companheiro, já embonecado pelo tempo. A necessidade dos bonecos, levou o grupo à Tatiana Burg, que os construiu conosco e, aos poucos, foi dando identidade e identificando-se ao grupo. Artista Plástica e fotógrafa do Trecho, abre caminho para a insistência nas linhas de fronteira, as artes plásticas passam também a constituir eixo fundamental do grupo.