segunda-feira, 2 de junho de 2008

anedota fantástica de uma noiva no centro da cidade. um segundo episódio.


na cidade de são paulo

banheiro estação são bento. eu tremia, mãos, tremia. na frente do espelho, o vestido posto, na frente do espelho. finalizava-me, penteado, maquiagem. mais uma vez, o vestido, o branco, e eu tremia. o fato: impossível acostumar-se. o vestido implica necessariamente no desconhecido, necessariamente na rejeição dos outros, necessariamente na refeitoria de mim. em mim mesma. as pessoas saem de suas tocas para me ver, as pessoas não escondem olhares na rua, não escondem perguntas, qualquer, qualquer, perguntam tudo, resposta qualquer, qualquer, qualquer que viesse bastava. "tá procurando o noivo? tá perdida? o mosteiro tá pra lá... você vai se casar? perdeu o noivo? olha lá! olha a noiva lá! o noivo tá aqui, olha ele aqui!"
vou caminhando por dentro da estação, percebo, não eram as pessoas que estavam saindo de suas tocas, eu é que estava indo para o ninho, do pouco a pouco de gente que se achegava, de repente, multidão, miolo da são bento e, passo pra fora, ladeira porto geral. mais gritos mais que mais. começam também os celulares. sim, não há escapatória, sempre, sempre haverá os celulares e suas fotos. passo do lado de um vendedor, entoando sua ladainha de venda de não-sei-que produto, de repente, ladainha mesma, muda o produto com a minha passagem. "casamentos. vendo casamentos também."

estou tonta. tonta e caminho. o dia, cinza e frio. e eu caminho. uns vem querendo me dar ajuda e eu não quero, não quero ajuda. apoio-me nos prédios. "você está se sentindo bem amor?" concordo com a cabeça. é minha cabeça. ela que concorda e nega tudo.
olho o pontilhão abaixo, subo no parapeito. tempo nem de um segundo, guarda pula e me tira rapidamente. já sabia da reação, queria conferir, as vezes, quem sabe eu estivesse enganada, não haveria tantos fiscais, tantos olhos defendendo o manter do mesmo. o manter do mesmo. o manter do mesmo.
me solto, sigo à sé. no caminho, homens mechem comigo e mulheres gritam, "respeita a noiva! respeita a noiva". outras, outras já disputam o buquê. "joga o buquê! é meu, é meu!"
a sé. antes de atravessar a rua e adentrar a praça, tiro os sapatos. olho de longe. vou passando e no meu caminhar, distraio o pouco público do pastor que deixa de ouvi-lo para seguir a mim. passo no centro de uma roda de amigos e olho, o marco zero, centro da praça, em cada canto, lugares, rio de janeiro, minas gerais. eu estava no umbigo de são paulo. com a ponta do vestido branco, começo a limpar o marco, minas, rio, o mapa no topo. de repente, percebo, muitas pessoas aglomeradas ao meu redor, uma roda, muitos, muitos celulares. olha pra cá, olha pra cá. muitas, muitas indagações. agacho um pouco ao lado da pedra, apenas eu no meio daqueles tantos. levanto-me em direção à catedral, imensa, inflexível, eu, miúda e descalçada.
sigo e sento apenas no primeiro degrau. uma mulher. "coitada. coitada dela, ele te largou, não foi, filha? coitada, coitada dela". olho para as pessoas. miúda e flexível, olho para o muro-gente. viro, mais uma vez olho a entrada da catedral. será que entro? sigo mais alguns degraus. não consigo. não consigo. sento.



eis que uma mulher, uma mulher filha daquele umbigo, buraco negro de São Paulo, uma mulher da rua, daquela praça, órfã de quatro paredes me olha de frente. fala direta comigo, sem construção, sem medo, sem ironia, sem volteios. olha-me no olho, olha direto. “pronto, acabo, pronto. você é nova. tem um tanto pra vivê ainda. o que já foi, já acabo, e pronto, né?”. eu olho aquele rosto que me olha suave, rosto já sem dentes, mas tão bonito. o rosto mais bonito. o mais bonito. “você qué entrá na igreja?”, eu concordo com a cabeça. “pode deixá, eu te levo”. estende-me sua mão e eu entrego minha mão à ela. pegou-me e laçou meu braço no seu, qual noiva, e me conduziu para dentro da igreja. foi a primeira, a primeira pessoa que me quis, daquele jeito, sem modificações, que simplesmente deu-me o seu braço para compor com o meu. eu e aquela mulher. eu e aquela mulher éramos marido e mulher. ajoelho e ela senta ao meu lado. rezo e ela reza comigo, guardando-me em seu zelo suave. terminadas as ave marias e pais nossos, olho para ela. vamo?, ela concorda, novamente trança meu braço ao seu, dessa vez conduzindo-me ao fora, ao mundo. olho, na saída da igreja, estátuas. elas tão sujas, eu preciso limpá elas. sigo à uma e ergo o vestido em meus gestos de limpeza. “não, não, você não precisa disso.” e não é me reprovando que me diz, mas com ternura de quem entende da vontade de lustrar a pedra. vou à outra estátua “não, você não precisa disso, porque você tá boa, o que já foi já passou”.



eis que um homem pega violentamente o meu braço “onde você pensa que vai? espera um pouco aqui que a gente vai fazer umas perguntinhas pra você”, vem outro homem, “vamos ali no posto policial”, a mulher, do meu lado, se adianta, “não, ela tá comigo, eu to levando ela já no posto”, isso, ela me leva, “não, a gente que vai te levar”, eu só confio nela, “eu to cuidano dela” “você?” é, ela tá cuidando de mim. “então, vamo fazê assim, ela te leva e eu vou junto” não, só ela. tento continuar caminhando, mas o homem me prende, me segura ainda mais forte pelo braço. ai, você tá me machucando! “solta ela, solta ela, você tá machucando ela”, ela dá um jeito, nós nos soltamos dos dois...

“você viu o que eles queria fazê? eles ia te levar pro hospital de loco.” eu não havia percebido. “você, você é igual eu”, seguro firme seu braço, “eles tava querendo te arrematá, cê tem que ir embora da sé”, me leva pro metrô, “isso, vamo. eles queria te arrematá! bando de homem safado!” mais uns homens se aproximam, ela espanta todos, “sai! eles tá tudo querendo te arrematá, querendo roubá sua história.” compro a passagem, “presta atenção, quando os homem vié, cê foge, não deixa ninguém te arrematá”. ela, única que não me queria por a parte, única que me quis livre, que eu não me deixasse, eu não me deixasse levar. qual seu nome? “simone” você é um anjo simone. você me salvou. “cê que é meu anjo, eu num vôo esquecê de você nunca.” diante da catraca, “eu to com dor no coração de te deixá ir. cê vai ficá bem, não vai? cê não vai deixá os homi te pegá?” não. não. eu vô ficá bem. nos abraçamos, num longamente, longamente guardado, marido e mulher, foi uma vida inteira que vivi com ela naquele momento, eu e simone, meu noivo, olhos marejados da despedida, abandono depois do encontro, do espelho. ela, o rosto mais bonito. o mais bonito. ela, ela me fez crer de novo. crer de novo naquilo que envolve. crer no homem.
lembro da pergunta que me haviam feito, “você tá procurando um noivo?”, percebo, eu estava. procurava um noivo. e encontrei Simone.
separada dela, separo-me de algo de mim que só ela poderá ter, há algo de mim que só ela viu e que só ela poderá guardar ao lado.
.
no metrô, dentro do metrô, ninguém me olha de frente, os olhares são desviados, aquelas pessoas, elas se acostumaram a olhar o escuro. sigo até a armênia e lá, outro mundo. de risos e brincadeiras leves, os homens insistentes e animados oferecendo-se como noivos, num coro intenso de assovios, comentários e propostas, “eu tô aqui amor, seu noivo”, não, meu noivo ficou na sé, pensei. entro num bar, tomo água, café, suavemente embalo as pessoas na fantasia, e elas divertosas, se esparramam com minha passagem. um bando de crianças sai, olha a noiva, olha a noiva, uma noiva, uma noiva!, até que uma, mais adiante, pergunta, malandra, "onde cê vai? você fugiu do noivo foi?", olho sorridente, respondendo a malícia da menina, ela entende sozinha que sim.
volto ao metrô, seguem-me os seguranças que carrego até a rodoviária. lá, deixo-os assim como deixo a roupa, dispo-me do vestido, incerta de querer despi-lo, há algo em mim, algo que queria ficar na roupa, mal consigo mapear o quê, o quê me faz retornar ao todo dia, mesmo que mesmo. penso, a noiva é o meu caboclo de lança, o vestido é o manto, a véu é a cabeleira, o buquê é a lança. penso, a noiva é o meu carnaval. desentendo de novo, como é possível retornar depois do carnaval?
.
entretanto, ainda que despida da roupa, sei de meu casamento, a qualquer um que me venha, entenda, casei-me já, casei-me tanto, dos olhos que se entenderam, profundo olhar de cão por onde se espia o Mais.





por Carolina Nóbrega

9 comentários:

Anônimo disse...

...A busca dos limites entre a ficção e a realidade...

Ao ler a anedota também me perguntei se existia e onde estaria essa linha.
Você sabe, Carol?

Gde bjo!

Penelope Brito disse...

Impressionante. Só. Impressionante.

Anônimo disse...

Que bom poder ler isso =]

Thaíse disse...

É lindo de passar o olho por toda essa variedade de reações. Ser humano é muito louco, é lindo mesmo.

=)

Anônimo disse...

ah...eu nem sei ficou claro, mas meu comentário acima a pergunta era em relação à anedota.

leo disse...

oi cá! adorei sua escritura.

lembro de você dizer q a narrativa da noiva (sua fuga) já está pronta no imaginário, e daí o intenso diálogo q as pessoas desejam travar.

fica-me o gosto de discutir mais, diga mais. ah, compare com as outras intervenções tb!

abraço

Cia Gato Preto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cia Gato Preto disse...

que mais lindo casamento! eu quase posso ver simone...que vocês sejam felizes para sempre.

Tina disse...

Que mais belo relato!
Uma noiva levada ao altar por Simone (nome sugestivo, aliás).

Me inspirou a escrever um textinho poético:

Só ela

Simone foi a única
a pedir minha
mão
limpa de medo
dos que me fitavam

Foi a única a subir no altar
do ponto zero
de uma vida
que ali começava

Ninguém olha para Simone
ela me deu sua mão
(maltratada pelo preconceito)
para subirmos
no templo da sé

Rezamos, suplicamos juntas
por uma outra vida
Sim. Eu aceito.
Sim. Eu aceito.
Selamos um pacto de
cumplicidade
entre mulheres

Beijos, Carol!