domingo, 3 de outubro de 2010


Junto e misturado: uma etnografia do PCC
Karina Biondi

por mafê







De repente a prisão se achegou à vida assim sem dar de quando. Quando viu era mais que mulher, era mulher de preso. Acho que foi para engolir os dias que passou a pensar aquilo como lugar de potência de aprendizado. E assim foi.

Visita após visita foi conhecendo o sistema e nele seu PCC. Seis anos. Teve de apreender seus códigos fluidos, sua moldura movente. Mulher, mulher de preso, mulher de preso em cadeia de PCC. Passou a compartilhar, graças ao seu marido, das conversas com os irmãos ali em caminhada.

Foi assentando em seu olho de antropóloga o que significa o lema paz, justiça, liberdade... e igualdade.

Onde se teria mais Estado do que num presídio?

No andar do tempo, ela vê um PCC sem hierarquia definida em comando centralizado, percebe que aquilo tudo é outra coisa, “crime organizado” não dava conta do acontecimento do 15. Sem terrotório nem comando fixado, perene, tem é um “proceder” transcendido em orientações coletivas. É mais ou menos assim: há uma transcendência PCC, uma aura comportamental que concede diretrizes a uma série de atores locais e contingentes que decidem e se responsabilizam por cada decisão tomada. O irmão tem de ser capaz de sustentar e defender seu ato frente o coletivo e esse ato deve estar de acordo com esse código superior, transcendente, ideal, em que todos se apóiam para dali criar seu cotidiano. Esse “proceder” [e sobre isso, ler o Adalton Marques] significou uma viragem forte para a operabilidade do sistema prisional: entre as pessoas presas, acaba-se com as relações de violência e poder baseadas na força individual. Fim dos estupros, fim dos aluguéis de xis e de tantas outras posturas onde presos fisicamente fortes violentam presos fisicamente fracos. Pra geral aparece a figura do coisa, e também a sua exclusão do convívio (muitas vezes mortal). Entre aqueles que partilham a caminhada, deve-se agir pelo certo. O foco da ação, mais do que nunca coletiva, é quebrar a cadeia.

E na relação entre presos e instituição, outra viragem: uma série de irmãos articulados constituem-se como negociadores frente a instituição. A violência institucional enfrenta agora oponente forte, violento como ela, impassível aos seus desmandos. O PCC passa a combinar estabilidade, já que é grupo real (alguém tem dúvida?) generalizado e forte nas prisões; e instabilidade, pela fluidez das suas articulações de poder e de seu espaço de influência.

Para pensar essa instabilidade, Karina vai buscar Deleuze e Guatarri. Encontra neles a potência da ideia de rizoma, uma grama feita de poder: não há um ponto central, um caule que se cortado a estanque. A grama cresce sem ponto convergente. O PCC não é controlado por Marcola ou qualquer outro. É contingência dos atores que o realizam e recriam, pautados em ideias, que as ações também sustentam e atualizam. O jogo de responsabilizações coletivas traz o peso que têm qualidades de fala, de posicionamento público. Cada irmão deve ser capaz de discutir suas posturas frente a população e de representa-lo frente a instituição. Estratégia e improvisos caminham juntos aqui. São corpos cheios, cabeças lotadas de idéia...


JUNTO E MISTURADO: UMA ETNOGRAFIA DO PCC
Autora: Karina Biondi
Editora: Terceiro Nome

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