sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Nós no AMBLU.

Ou

A Poesia na relação

Ou

O teatro para além do instante


Assim que decidimos nos inscrever ao festival, fomos atrás de descobrir se havia algum albergue ou abrigo em Blumenau, descobrimos o AMBLU e nós mesmos ligamos para ver se havia interesse no nosso trabalho e a aceitação foi imediata. Mandamos a proposta e passamos.
Para chegar ao abrigo do centro da cidade, o percurso é longo. E nesse percurso a mudança de cenário é radical. As casinhas alemãs, as ruas limpas, os canteirinhos de flor vão desaparecendo, aos poucos, morros e mata, casas cada vez mais dispersas, sem constituir um corpo urbano, casas cada vez mais pobres, barracos de madeirite. Subimos uma ladeira bastante íngreme e, enfim, isolado numa montanha, está o abrigo. E quando saltamos do carro, os rostos que nos observam são muito próximos dos rostos que encontramos no SAMIM e nos outros albergues nos quais trabalhamos. Afinal, a marginalidade é a mesma e a exclusão e isolamento também. Se nas ruas vemos muitos brancos e loiros e quase nenhum negro, no abrigo víamos os rostos mais diversos, eles estão lá sim, também existem naquela cidade, mas afastados, periféricos, sem macular o quadro vivo da pequena Europa no Brasil do centro de Blumenau.


O abrigo é de uma força quase que arrebatadora. Cercado de uma natureza exuberante, o terreno é grande, mas os aposentos minúsculos. Pequenas casas. Pequenos espaços. Pequenos universos: o dormitório, o refeitório, o salão de belezas, a horta, o varal, os carrinhos mágicos de um morador de rua que fez universos líricos sobre rodas... Um funcionário nos conduz por aquele espaço, bastante envolvido em poder fazer aquele local saltar aos olhos de outros. Antigamente, ao que contou, o local fora um prostíbulo. Pouco abaixo da montanha, um córrego, já totalmente poluído... podia-se ouvir o som da água.


Enquanto conhecemos os espaços, vamos nos apresentando às pessoas e contando sobre o espetáculo que queríamos montar lá e apresentar para público de fora no período de uma semana. Conhecemos rapidamente Mara Lúcia e Sônia. Deitadas no quarto, risonhas e conversadeiras. Mulheres fortes que se apresentam a nós com a intensidade de saber de si, com uma voz que se apresenta e que nos quer conhecer. Elas rapidamente se envolvem pela idéia e, enquanto jantamos juntos, nós a convidamos a participar da peça, com a total liberdade de elas fazerem o que quiserem e elas aceitam e ficam muito animadas, já inventando as possíveis fantasias que construirão conosco. Mara Lúcia decide ser dama de honra da noiva, já inventando na hora falas e canções. Sônia nos conta que já fez teatro e decide fazer a cigana da história da Miss.
Fora as duas, que já de saída nos abraçaram, houve outros que se envolveram de forma mais discreta, distante, crianças e velhos... e houve aqueles que, tranqüilos, deixavam-nos estar ali e criar ali... e houve também os desconfiados. E nós, impossibilitados de fazer um processo destrinchado, de maneira nenhuma de qualquer forma nos impomos a eles... sempre muito respeito, afinal, as vidas daquelas pessoas, sabemos, são muito imensas e merecem a maior admiração. No geral, de qualquer maneira, receberam-nos muito bem e aceitaram o que propúnhamos com tranqüilidade. Os funcionários, inclusive, gostavam da idéia de que outras pessoas pudessem ver o abrigo, conhecer o espaço.


Diante da intensidade daquele local, decidimos mudar a estrutura da peça e a fazer em deslocamento pelo espaço, itinerante, num formato totalmente diferente do que estávamos habituados. Aquele espaço gritava por outras descobertas que nós teríamos pouco tempo para assimilar... Criamos, pois, um roteiro que brincasse pelas vielas e pátios do AMBLU.


Dia seguinte, de ensaio, encontramos Sônia toda arrumada em cigana e já havia criado para si um espaço, bola de cristal em caixa de pizza... surpreendemos-nos um tanto... nunca alguém tinha se entregado tão rapidamente a nós... que alegria poder despertar essa vontade do jogo, essa vontade da ficção, adormecida em Sônia.
As pessoas do albergue nos acompanham no ensaio geral. Mara Lúcia se envolve totalmente no jogo e Sônia de improviso, entra também em outra cena como a dona do bar. Os moradores do albergue nos acompanham no ensaio. Como se fosse apresentação. Aplauso no fim e tudo. Fala de Mara Lucia: eu sei do que vocês tão falando. Dos sonhos que a gente tem e que não conseguimos realizar. Eu sei do que vocês tão falando.


Temos que fechar tudo muito rápido, pouco tempo que temos para ensaiar, ainda mais mudando radicalmente a peça, experiência que nunca tivemos antes, por sempre habitar um bom tempo o espaço de apresentação e convivendo com as pessoas... Dessa vez, foi tudo muito rápido e também muito intenso, laços que depressa já se formaram, nessa criação-relação artística, sim, mas muito íntima e direta, nós diante deles, eles diante de nós.


As apresentações correm bem com eles, dia a dia o trabalho cresce... conseguindo cada vez mais jogar com eles. Além de Mara Lúcia e Sônia, existem muitos outros, que mais como espectadores também se aproximam de nós, travando uma relação rápida e intensa... uma mãe com filhas pequenas... um senhor de pé machucado... um homem de palavras curtas e duras... um tanto de pessoas...


Os funcionários dizem a nossa orientadora que acham ótimo que Mara Lúcia e Sônia estavam fazendo a peça conosco, que as duas estavam animadas, mais seguras e envolvidas. Sônia nos diz que depois que a gente for embora ela vai organizar uma peça com os moradores de lá na qual eles possam contar suas vidas. Que seria um jeito do mundo os ouvir... Ficamos mais do que felizes. Afinal, sim, esse trânsito inusitado, qual um respiro no espaço, pode sim gerar pequenos brotos...
Damos fotos nossas com eles a cada um que estava mais próximo... difícil despedida de afetos que se criam rápidos, quando a poesia ajuda a dissolver as muralhas duras das relações cotidianas. Agradecemos-nos mutuamente, eles e nós transformados e certos de termos vivido verdade e de termos nos encontrado inteiros e respeitosos, de termos conseguido atravessar fronteiras que as estruturas nos impõe.
Hoje, votos para que o trecho siga rumo a melhores e outras paragens... e que a poesia possa coexistir na vida deles, bem como suas vidas coexistiram em nossas poesias.

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