sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Sobre o Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau

Ou

Elucidações sobre o Panóptico

Ou

A Descoberta da Marginalidade

Ou

Sobre a Existência de Ilhas

Ou

Acerca da Moral Entre os Homens


Iremos nesse texto propor algumas perguntas, mais do que respostas. Por que é exatamente esse nosso caminho, o do questionamento, mais do que do resultado pronto... de estarmos de mala nas costas, sapatos e pé na estrada, mais do que construindo morada ou restaurando a velha casa.

Antes de mais nada, adiantamos que o festival foi absolutamente necessário para nos dar a certeza do rumo que escolhemos, bem como de entender que de fato, estamos diante de uma rigidez das formas, uma rigidez em muito aleatória, que pode ser amolecida ou questionada... Entendemos também que devemos ter mais cuidado. Afinal, os homens estão tão distantes um do outro que, se forem sair de seus pequenos mundos, precisam de todo um preparo para entrar em relação. Precisamos ser mais convidativos e suaves, mais condutores, para que os processos possam se encadear de maneira mais tranqüila, reverberando para além da rejeição.

Polêmica. Sim, isso que o trabalho gerou. Desestruturação e polêmica. A ruptura, que o grupo propõe como eixo fundador, ocorreu de maneira muito mais intensa no próprio festival do que no albergue.
Participamos de um julgamento, no qual nós, réus, havíamos cometido crimes, crimes morais e artísticos. Em nenhum momento, por exemplo, nas discussões geradas pela peça se comentou de outros projetos muito análogos ao nosso como o da Cia. São Jorge e "As Bastianas", como se o que tivéssemos propondo fosse algo impossível, ingênuo e equivocado, que não pode ser... como se nunca tivesse havido.
A verdade é que mal se falou da peça. O que de fato incomodou e provocou foi ter entrado naquele local, foram aqueles homens diante daquele local, foi o real batendo na cara e o que nos disseram foi, "não, não devemos nos relacionar assim, diretamente com o real".
Diziam apenas que éramos bons atores e paravam por aí, porque essa não era a questão. Por que essa não era a questão... nesse caso, julgamos nossa intervenção no festival (por que é assim que deve ser chamada), extremamente frutífera, foi o único debate em que não entrou em questão os pormenores do fazer teatral... o único debate em que se falou de vida. Alguns nos criticaram dizendo que o abrigo era mais forte do que nós e a isso, nossa resposta era "que ótimo".
Acusaram-nos de expor aquelas pessoas... Primeiramente, todas estavam perfeitamente cientes, e, no momento em que nos acusa, está menosprezando o poder de escolha delas, está necessariamente as acusado de inconsciência. Se ela quis se apresentar conosco, se quis se mostrar visível, nós, enfim, não deveríamos abrir espaço? E você, público externo, não deveria considerar que a exposição talvez seja almejada, em uma vida de exclusão e invisibilidade? Ou, será, não foi você público externo que se sentiu exposto e despreparado, quiçá envergonhado de ser visto por aquelas pessoas, uma vez que, dentro de um espaço que é muito mais delas do que vosso, elas não precisam se anular e se esconder no meio da paisagem urbana?
Diziam-nos também que não deveríamos contar a história deles, nesse momento, alertamos, "são contos de Mia Couto"... eles nos respondem, "mas tem a ver com eles"... e não deveria ter? E por que razão eles deveriam nos assistir? Logo depois dizem, "não, mas vocês são diferentes demais deles, são outros corpos, são outras vozes"... ah, mas então porque iríamos lá se não fôssemos trazer nada de novo?
Comparavam o tempo todo o espaço com hospitais e hospícios e seus freqüentadores como doentes, foi então que ficou claro, eles não tinham idéia do que era um albergue, morada provisória em tempos de instabilidade. E, hora, desabrigados são necessariamente doentes mentais? Foi assustador o quão distante aquele mundo era daquele público.
Propunham-nos um trabalho assistencialista, de apresentar uma peça só para eles, e fazer pesquisa de campo e apresentar fora dali, quiçá na rua. E não seria nesse caso que eles seriam também explorados? Tendo sua vida utilizada sem que eles pudessem de fato aparecer e falar conosco? E que transformação de espaços e novo fluxo estaríamos propondo dessa maneira?
Também nos indagavam "e quando vocês vão embora, o que acontece? Como eles ficam?" e nós nos perguntávamos, mas por que deveríamos oferecer essa garantia exata só porque fomos lá? Por que não podemos ser apenas uma passagem, que pode ou não movimentar o lugar em novos rumos? E no teatro de palco, o que acontece com o público que vai embora? Por que nesse caso o ser efêmero é tão mais aceito? Por que aquele público se quiser pode ir em outra peça e o público do albergue não? Ah, então se eles não podem ter acesso sempre eles não devem ter nunca? E, de qualquer maneira, passamos dias lá... não foi assim tão passageiro...
Foram no terceiro dia e disseram que não tinha ninguém do albergue vendo. Primeiramente, muitos já haviam visto tudo e não sentiam necessidade de ver de novo, ficando sentados, observando a nossa passagem... e conversávamos juntos depois que tudo terminava... Depois, haviam sim gente de lá acompanhando... por exemplo uma mãe com duas filhas. Por que elas não foram reconhecidas? Por que não aparentavam ser de rua?
Disseram que estávamos diante de uma questão ética. Não negamos as possíveis contradições do que fazemos. Mas o conflito de classe real gerado daquele encontro não pode ser uma proposta real? E essa moral, essa lei de relacionamento humano, tem fundamento em que? Não devemos então nos olhar de frente, devemos sempre legislar os limites, para não correr o risco de que as coisas mudem de lugar?
Alguns diziam que nosso interesse não era teatro, que não estávamos fazendo teatro, que era na verdade assistencialismo social, ou ação política... Mas quem foi que estabeleceu esses limites, se não tu que nos julga agora? E qual a vantagem de separarmos tudo? Por que não mesclar as fronteiras e se preocupar menos com o resultado artístico e mais com o encontro humano e a desestrutura política? Daí que nos entendemos diante de uma estrutura de Panóptico - centro penitenciário ideal desenhado por Jeremy Bentham em 1791, no qual todos os aposentos podem ser observados de uma torre central, sem que dos aposentos se veja o observador -, que esse grande olho que julga, pune e estabelece os limites já nos é tão natural, que passamos a também legislar e estabelecer limites e punir em nossos meios.

Talvez, de fato, a situação do festival tenha sido demasiadamente artificial para o trabalho... afinal, as pessoas tinham que assistir para, por exemplo, julgar, e não tinham como escolher se queriam ou não ir... Além disso, nesse formato, não preparamos nenhum programa, como havia na primeira versão do SAMIM, o que talvez tenha deixado as pessoas mais carentes de dialogar conosco...

De qualquer maneira, muito mais do que imaginávamos, entendemos o qual de fato as esferas sociais estão fragmentadas e que, para aproximá-las é necessário muita cautela, mais do imaginaríamos.

Além de tudo isso, em meio aos olhares de repressão, haviam aqueles que gostaram e se aproximavam mais como cúmplices, as vezes até em segredo para que os outros não vissem. Dentre as coisas boas que nos disseram, nos iluminaram de que o que estamos fazendo é "realismo fantástico".
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Qual a real vantagem na reprodução de formulas perfeitamente aceitas e reconhecíveis? Por que não arriscarmos errar sem nos defender da possibilidade da queda? Por que lustrar o mesmo palco e limpar suas cortinas vermelhas? Que o nosso desejo é abrir mais vazão ao desejo... menos formais e mais diante do outro... buscando essa estrada comprida que não chega a lugar nenhum se não nela mesma... rumando encontros e gerando potencialidades.

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